quarta-feira, 18 de março de 2009

Homônimo

Desde de que saiu do coma, Homônimo tem medo de dormir. Não que ele não durma, dorme sim. Raramente e sempre contra sua vontade. Em sua casa não há camas ou sofás, apenas cadeiras. Cadeiras de madeira, sem braço, sem encosto. Impossível achar uma almofada. Isso seria um problema para as visitas, mas visitas não são um problema para Homônimo. A única pessoa que se atreve naquele apartamento é sua vizinha do final do corredor. Agora não lembro se do 609 ou 610. E definitivamente não lembro seu nome. O que posso dizer sobre ela é que já lhe falta cabelo no topo da cabeça e que seu passatempo preferido é sentar-se em sua cadeira de praia - sempre a tiracolo, do lado de fora da portaria do prédio. Observa transeuntes de Copacabana protegida pelas grades verdes, acompanhada de cigarros de palha. Quando chove pode ser encontrada na casa de seu vizinho Homônimo, onde senta-se confortavelmente em sua cadeira de praia enquanto toma chá. Homônimo toma café.

sábado, 21 de fevereiro de 2009

Casamento

EXT. / ACAMPAMENTO / DIA

Gansos e galinhas correm por entre pés descalços de crianças e adultos em um chão de terra escura. Cacarejos e grasnejos se misturam com vozes altas e risadas infantis. O campo com escassa vegetação é preenchido com carroças de madeira e trailers, cujo colorido se transforma em degradê com a luz rosa do fim do dia que neles bate.
Irina, uma menina de 9 anos, sentada em um banco de terra cercado por algumas flores brancas e vermelhas, tem os cabelos negros queimados de sol. Seus olhos verde escuros contrastam com sua pele bronzeada. Como todas a sua volta, Irina usa uma saia que só revela seus pés; pequenos, descalços e sujos de terra. Ao seu lado, Maria, uma menina de 7 anos, enfeitada com flores nos botões de seu vestido quadriculado e em seu cabelo. Maria canta e dança de maneira desengonçada. Irina ri e bate palmas acompanhando a música, mas a brincadeira é interrompida quando um menino de 14 anos se aproxima.

MENINO
Sua mãe tá chamando.

Maria continua a cantar e puxa o menino para dançar com ela. Irina caminha contrariada na direção da qual o menino veio, olhando para trás para os amigos que ficam e cantarolando baixinho.

PAI (V.O.)
Não quero saber.

INT. / TRAILER / DIA

O trailer, majoritariamente verde e dourado em sua decoração, parece ter mais coisas do que nele cabe. A mesa embutida em uma das paredes está posta com 3 pratos para o jantar. O único canto que não se vê direiro é o banheiro, escondido por uma porta de correr entreaberta.
Os pais de Irina têm cabelos escuros como os dela. Seu pai, um homem de 45 anos, tem cabelos longos e ralos escondidos em um rabo de cavalo. Ele usa mais jóias que a mãe de Irina, mulher de 30 anos, de olhos verdes e seios fartos revelados pelo generoso decote de seu vestido que a cobre até os pés.

PAI
Que ousem.

Irina entra no trailer e os olhares se voltam para ela por breves instantes. Ela está alheia à reação dos pais a sua chegada e caminha até a mesa posta com o jantar.

PAI
A última palavra é minha, sou o homem desta casa.

A mãe de Irina intercala olhares sérios entre a filha e o marido. O pai caminha até a mesa e, ainda de pé, começa a se servir enquanto a mãe traz a jarra de suco e os copos. Já sentado, o pai sorri para a filha e faz um carinho quase bruto em sua cabeça. Irina não se serve, espera sua mãe fazer seu prato.

INT. / TRAILER / NOITE

Irina dorme com um ventilador ligado próximo a seu rosto enquanto sua mãe lava a louça.

INT. / TRAILER / DIA

Um burburinho de vozes de mulheres toma o ambiente. Irina está rodeada por elas. Atordoada com a atenção recebida, não sabe para onde direcionar seu olhar.
Os ornamentos dourados do arco branco que enfeita sua cabeça combinam com os bordados de seu vestido bufante e também branco. As mulheres arrumam seu cabelo, roupa e jóias e a cobrem de carinhos e beijos. O tilintar de seus colares e pulseiras compete com suas vozes. Com exceção de Irina, todas estão de vestidos e saias coloridos e estampados.
O som de uma música animada por violinos e acordeons entra pela porta aberta do trailer. Todas se encaminham afobadamente para fora. Antes de sair, Irina ajeita o arco em seu cabelo e puxa sua trança com cuidado para frente.

EXT. / ACAMPAMENTO / NOITE

O acampamento está enfeitado com balões e bandeiras coloridas. A decoração é algo entre festa junina e baile de carnaval. Há 4 mesas de madeira de 6 lugares cada. Homens e mulheres estão sentados em mesas diferentes, todas fartas de comida e bebida.
Os homens falam alto e parecem não conseguir ficar sentados, gesticulando com seus talheres cheios de comida, que se espalha pela mesa e pelo chão. Se abraçam em clima de comemoração, brindam batendo seus copos e derramando bebida sobre a mesa, apagando as velas acesas em seu centro. Um pouco afastadas, as mulheres observam mais contidas, apenas esboçando alguns sorrisos e trocando poucas palavras umas com as outras.
Irina senta de costas para a mesa dos homens e de frente para sua mãe. Ao olhar para trás, Irina vê um homem de 50 anos entregando uma garrafa de bebida envolta por uma corrente de ouro a seu pai. Enquanto eles se abraçam, o pai de Irina percebe que sua filha está olhando e manda um beijo com as mãos seguido de um largo sorriso. Irina sorri para o pai e se vira, voltando a encarar sua mãe, sem tirar o sorriso do rosto.

EXT. / ACAMPAMENTO / NOITE

Irina dá as mãos ao seu pai, em cima de um longo tapete vermelho e roto. O tapete guia até uma tenda alta e larga que forma um grande corredor. Sua entrada parece a de um circo e dela vêem-se várias cabeças que parecem procurar algo do lado de fora. Irina olha para seu pai, que olha para o outro lado e gesticula fazendo sinal para um homem do lado de fora da tenda entrar.
A platéia de 100 pessoas sorridentes bate palmas enquanto Irina entra de mãos dadas com seu pai. A sua frente, um senhor de 60 anos com um manto com detalhes dourados por trás de um altar. Em cima do altar há um pão grande e redondo, um pacote com sal e uma taça de cristal com vinho tinto. À esquerda do altar, um menino de 13 anos de bigode ralo, vestido de terno preto e gravata azul pastel. Seu nome é Vladimir. Ele sorri para um homem que está a sua direita, o mesmo homem que deu a garrafa de bebida ao pai de Irina.
Irina de braços dados com Vladimir. Um homem vestido de terno preto corta um pedaço do pão com as mãos e mergulha no pacote com sal.

HOMEM
Quando o pão e o sal perderem o sabor, não existirá mais amor entre vocês.

O homem leva o pedaço até a boca de Vladimir, que dá uma mordida pequena e depois até a boca de Irina, que come o que sobrou do pão. Irina luta para conseguir mastigar o pedaço de pão, grande demais para sua boca. O ancião que rege a cerimônia por trás do altar entrega a taça de vinho para Vladimir, que dá um gole generoso e depois passa a taça para Irina que apenas molha a boca, ainda ocupada pelo pão. Os dois riem da situação de Irina e são repreendidos pelo ancião com um tapa na superfície do altar.

EXT. / ACAMPAMENTO / NOITE

Já é quase dia e os homens tocam violinos e acordeons enquanto as mulheres cantam e dançam. Um homem carrega Irina no colo e rodopia ao som da música. Vladimir dorme com a cabeça apoiada em cima da mesa e o rosto esmagado pelos braços.

EXT. / ACAMPAMENTO / NOITE

A festa ainda acontece e a música continua. Vladimir usa uma blusa de manga comprida e calça brancas, sentado em um banco comprido de madeira em frente a uma mesa coberta com uma toalha de renda colorida. Em cima da mesa há algumas velas e flores já murchas. Maria está pendurada em suas costas e tapando seus olhos.

MARIA
Não.

VLADIMIR
Ivana?

MARIA
Não.

VLADIMIR
Sanja?

MARIA
Não.

Irina, com um lenço florido caído em volta do pescoço e vestido amarelo amarrotado, corre e senta ao lado de Vladimir colocando um cravo vermelho em sua mão.
IRINA
Toma.

VLADIMIR
Irina?

MARIA
Não.

Vladimir tira as mãos de Maria de cima de seus olhos, mas ela continua agarrada as suas costas. Ele olha para o cravo e depois para Irina.

VLADIMIR
Não tenho nenhuma nota pra te dar.

IRINA
Você é meu marido, sua nota já é minha.

Maria puxa o lenço caído no pescoço de Irina para cima, bagunçando seu cabelo.

MARIA
Cobre essa cabeça.

EXT. / ACAMPAMENTO / ENTARDECER

A música continua, mas está mais baixa e perdeu o ritmo. Irina usa um vestido vermelho e caminha atrás de uma mulher gorda em direção a uma tenda. Enquanto caminha, Irina olha para o chão, para as bandeiras caídas, garrafas quebradas e balões furados e murchos. A mulher abre a lona empoeirada da tenda e faz sinal com a outra mão para Irina entrar.
Dentro está escuro, a única luz vem de algumas poucas velas acessas. O chão da tenda está coberto por uma manta vermelha manchada e almofadas coloridas desbotadas. Na entrada da tenda há uma bacia com água e em cima da manta um pedaço de tecido branco. A mulher usa a água da bacia para lavar as mãos enquanto Irina observa parada.
A mulher levanta o vestido de Irina, que por reflexo abaixa e faz que não com a cabeça e os olhos cheios d'água. A mulher afasta sua mão de maneira bruta e se ajoelha. A mão de Irina treme segurando o vestido enquanto a mulher introduz os dedos na vagina da menina, que fecha a boca com força para não deixar o berro sair e deixa as lágrimas escorrerem. A mulher pega o tecido branco que está em cima da manta usando-o para limpar o sangue e sai da tenda, deixando Irina sozinha.
Seu corpo inteiro treme. Suas mãos seguram o vestido com força e seus lábios e maxilar estão tensionados segurando o choro. A mulher escancara a porta da tenda, abrindo espaço para Vladimir entrar. Pela abertura Irina vê seu sogro segurando o tecido com seu sangue e rindo enquanto é abraçado por outros homens. A mulher fecha a entrada da tenda e Vladimir fica parado na porta, olhando Irina, que dá um último soluço de choro e destensiona as mãos, largando o vestido.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

Bodas

O casamento de Juvenal e Marli já durava mais de 30 anos. Era o segundo dos dois. O casal vivia uma rotina de quem já não tem mais nada para descobrir sobre o outro, com as mesmas discussões sobre a cortina da sala ou sobre o motivo da briga naquela viagem de 20 anos atrás. Suas vidas eram temperadas com a visita semanal do leiteiro que, junto ao leite, deixava uma trouxinha de maconha. Sexo era apenas uma vez por mês, se tanto. Marli se sentia culpada pela escassez de sexo, mas não o suficiente para tentar mudar algo. Aquela experiência mensal já beirava o desagradável para ela. Para Juvenal também. A cada dois fins de semana, Juvenal se encontrava com amigos da firma onde trabalhara durante 25 anos para pescar. Marli sabia que isso não era verdade porque Juvenal nunca conseguia pescar nada e chegava em casa cheirando como alguém que tinha acabado de sair do banho. Nos primeiros anos, Marli se preocupava com o caso do marido, mas depois se acostumou. Aproveitava a casa vazia para ela.
Os “amigos da firma” de Juvenal eram na verdade uma puta de 50 anos, disposta a ceder seu cocô para deleite de um senhor aposentado por um preço módico. Marli já o havia visto sem dentes, sabia de sua fobia de cachorros pequenos e não se incomodava com sua ocasional incontinência urinária, mas Juvenal nunca havia conseguido lhe contar sobre seu gosto por fezes. Fezes nada, cocô. Juvenal falava essa palavra de boca cheia.
O aniversário de casamento do casal se aproximava e, apesar de não terem comemorado os 30 anos de união, resolveram comemorar 33, com medo de não conseguirem comemorar 34. Combinaram um jantar com os amigos que ainda restavam, em casa mesmo. Juvenal desceu as garrafas de vinho e Marli fez lasagna. Ao final da noite e do vinho, e com o último baseado esmaecendo, o grupo estava mais torto do que quando chegou. Ou talvez tivessem se endireitado. Um mal estar começou a tomar conta do grupo e uma fila se formou para o banheiro. A lasagna de Marli aliada ao grande consumo de bebida causara revertério no grupo de senhores. Uma senhora chegou a se borrar nas calças no meio da sala, sem conseguir esperar por sua vez no banheiro. Foi um caos. Juvenal e Marli correram para socorrer a amiga e a levaram para a área, onde havia um banheiro de empregadas. Deram-lhe uma toalha e uma saia limpa. Laura, a amiga envergonhada, não conseguia parar de pedir desculpas de dentro do banheiro. Juvenal suava frio e Marli salivava. “Me dê sua roupa que coloco de molho no tanque!” - disse ela.
Juvenal e Marli brigaram pelas calças de Laura, que continuava a pedir desculpas. Ambos se surpreenderam com a avidez com a qual o parceiro puxou as calças enfezadas e, com elas ali entre os dois, Juvenal e Marli, casados há 33 anos, se beijaram como naquela viagem de 40 anos atrás, quando se conheceram, quando cada detalhe que descobriam um do outro causava excitação.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

Morta duas vezes

INT./ SALA DE JANTAR/ DIA

Apesar das janelas fechadas, o dia se mostra pelas frestas das persianas de madeira. Uma luminária pendurada no teto da sala ilumina a mesa de jantar forrada com uma toalha amarela desbotada. O cômodo é pequeno tendo, além da mesa, apenas uma estante com uma televisão, um rádio e uma imagem da Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, e um sofá forrado com uma manta florida. Uma senhora de 60 anos sentada à mesa ajeita alguns fios de cabelo rebeldes que se soltaram do coque com a mão esquerda, enquanto sua mão direita leva uma colher cheia de sopa à boca. A mesa está servida para dois. A senhora alcança uma garrafa térmica a sua frente para encher sua caneca vazia, mas o café acabou. Ela retira o copo da mão da moça sentada a sua frente, que não reage e deixa a mão cair apoiada sobre a mesa. A senhora dá um gole, faz uma careta e resmunga.

SENHORA
Tem necessidade de botar tanto açúcar?
Ave Maria...

A senhora coloca o copo de volta na mesa e corta um pedaço de pão francês com as mãos para molhar na sopa.

SENHORA
Isso vai resolver as coisas.

Uma criança de 1 ano está de pé, apoiada nas costas da cadeira da moça sentada no outro extremo da mesa e brinca com os longos cabelos encaracolados que caem por trás da cadeira.

SENHORA
O que eu tô fazendo você também faria. Se fosse pessoa boa, faria. Meu filho nunca foi bom em enxergar as pessoas. Nunca foi bom. O que eu tô fazendo você fez. Não fez assim, não fez igual, mas fez.

A senhora balança as pernas apoiadas no chão pelos dedos dos pés lenta e continuamente enquanto termina sua sopa. Empilha os 2 pratos e limpa algumas migalhas de pão da mesa com as mãos.

SENHORA
Meu menino era teimoso. Coisa ruim para falar dele, não tem. Só você. Teimoso que doía. Com a morte de João, naquele dia você morreu pra mim.

A senhora se levanta com os pratos e caminha em direção à cozinha. Não há divisão entre a sala e a cozinha, que nada mais é que um canto com uma pia pequena, um fogão e uma geladeira. Enquanto caminha, ela pega a criança pela mão e a traz consigo até a pia.

SENHORA
Acompanhei o enterro dele e o de você. Lá no cemitério foi enterrada no mesmo caixão.

Coloca os pratos dentro da pia e põe a criança sentada na bancada, encostada na parede. A menina brinca com a água que sai da torneira enquanto a senhora lava os pratos.

SENHORA
Pra mim é morta duas vezes.